quinta-feira, 20 de março de 2008

Bem-vindo ao Tietê

Imaginem a cena!

Bem-vindo ao Tietê
Por Daniela Chiaretti, de São Paulo
20/03/2008

Fotos: Davilym Dourado / Valor
E la nave va: passageiros cumprimentam os motoristas parados na marginal, ao som suave de um saxofone
Que cena foi aquela? Um grupo de gente sobre o convés de um barco, navegando em pleno rio Tietê, erguendo os braços e fazendo "ola" para motoristas de carros, ônibus e caminhões nas marginais travadas, numa manhã cinzenta em São Paulo, na altura do Cebolão? E os motoristas dos carros, ônibus e caminhões, todos devidamente engarrafados, respondendo com acenos e buzinas aos amalucados que navegavam no trecho urbano mais degradado do rio, tomando Prosecco e escutando um saxofonista como se tudo aquilo fosse muito natural? Pois aconteceu no sábado passado e espantou até os urubus que espreitavam às margens.


O encontro começou em grande estilo, às 9h30, em frente do Museu da Casa Brasileira, a antiga casa da aristocracia paulistana que exibe hoje seu belo acervo de mobiliário e design nacional em plena avenida Faria Lima. De lá saíram quatro ônibus cheios de arquitetos e urbanistas rumo ao improvável: uma volta de hora e meia no trecho mais pavoroso do rio Tietê, bem no centro da cidade. No caminho, o arquiteto Marcio Mazza, que inventou a aventura, levanta do seu assento no ônibus e aponta para uma pequena torre. "É o mirante do Jaguaré, que alguns conhecem por farol e foi desenhado por um sobrinho-neto de Santos-Dumont. Em poucos dias organizaremos um passeio para lá e estão todos convidados."


Marcio Mazza (à dir.), que organizou o passeio, e o economista Douglas Siqueira (à esq.), do Instituto Navega São Paulo: "Acredito que se sentirmos mais afeto por São Paulo poderemos planejar melhor e influenciar a qualidade de vida urbana", diz o arquiteto
Há um ano Mazza começou a programar alguns tours pela cidade, todos por trajetos pouco usuais, que ele divulga aos colegas pelo seu site Arq!bacana (www.arqbacana.com.br). O preço (R$ 50,00 para a volta no Tietê) é simbólico e paga apenas o ônibus, diz. "A idéia é envolver as pessoas com a cidade. Quanto mais você a conhece, mais se dedica a ela. Não dá para ficar planejando só no gabinete." Foi assim que, no ano passado, paisagistas, designers, arquitetos e urbanistas fizeram sua primeira mininavegação pelo Tietê. Em outra ocasião, exploraram as obras pouco convencionais do arquiteto autodidata Artaxo Jurado, em Higienópolis. Num futuro próximo irão à usina de Henry Borden, no sopé da Serra do Mar, em Cubatão, entender um pouco como funciona o binômio bombear água e produzir energia.


Mazza tem currículo diverso. No começo da carreira trabalhou em Paris, no Centro de Arte e Cultura Georges Pompidou. Lecionou Teoria da Arquitetura na FAU, a faculdade de arquitetura da Universidade de São Paulo. Nasceu na Mooca e adora explorar a cidade. "Gosto de comer fora, mas fujo do circuito Mello Alves-Oscar Freire", conta, entusiasmado com a pizzaria que descobriu no Belenzinho ou a churrascaria escondida no Jaguaré. Atualmente envolvido com as instalações de uma mina de bauxita para a Alcoa, em Belém, e com uma usina de etanol no sul de Mato Grosso, está convencido de que o que é lúdico educa e funciona. "Acredito que se sentirmos mais afeto por São Paulo poderemos planejar melhor e influenciar a qualidade de vida urbana."


Os ônibus param numa espécie de cemitério de barcaças, um pátio às margens do rio, bem embaixo dos viadutos da saída da rodovia Castelo Branco. A paisagem é macabra. As águas são marrons e se movimentam vagarosamente arrastando garrafas plásticas de refrigerantes. Uma bola azul vem chegando logo à frente de um tênis sem par. O cheiro é o de menos. Não é o de mato-molhado-depois-da-chuva, mas, surpreendentemente, não incomoda. Não faz calor, está garoando, talvez seja por isso, especula alguém. Os viajantes entram na embarcação calados e com ar de suspeição.


É surpreendente o auditório do Almirante do Lago, o simpático barco azulzinho que parece uma barcaça do Mississipi sem roda e em miniatura. Por ali, no térreo, instalam-se umas 160 pessoas. A turma veio com a família: há crianças, senhoras e adolescentes sentando em cadeiras giratórias. Alguns colocam no pescoço ou na testa o lenço branco com a campanha "Enquanto tem água tem vida", da Roca, uma fabricante de pisos e louças sanitárias. A monitora dá as primeiras instruções: não pode ficar nas áreas não demarcadas dos ambientes externos, não pode fumar e, naturalmente, nem pensar em jogar objetos no rio.


Douglas Siqueira, diretor de Comunicação do Instituto Navega São Paulo, baixa um telão com PowerPoint e explica o perfil da ONG que usa o barco para conscientizar a população e tentar produzir mudanças. "Queremos atrair a atenção do público para o Tietê, fazer com que as pessoas reflitam sobre o rio", diz ele. "Queremos mudar um pouco a cidade."


No barco, que tem capacidade para 200 pessoas, equipamento multimídia, dois banheiros e elevador para deficientes físicos, já circularam outros pioneiros. Em 2006, durante 70 dias, 1.700 pessoas viram dali a peça BR-3 sendo encenada pelos atores do grupo Teatro da Vertigem. O palco eram as margens do rio. Em janeiro, a grife Cavalera saiu do Ibirapuera durante o São Paulo Fashion Week e fez seu desfile bem por ali. Na semana que vem, uma novidade: o barco levará quem quiser ver de perto 20 garrafas PET gigantes que ficarão expostas às margens do Tietê até 25 de maio. As instalações são do artista plástico Eduardo Srur, o mesmo que em 2007 colocou caiaques no também morto rio Pinheiros. A iniciativa faz parte da mostra "Quase Líquido", do Itaú Cultural. "É preciso chamar a atenção para o problema da poluição difusa", continua Siqueira, falando sobre a sujeira que é lançada às ruas, não é recolhida e chega às águas do Tietê. Em algumas estimativas, responde por 30% da poluição do rio.


O barco ainda não se mexeu e Siqueira continua despejando informações. Diz que, a partir de abril e até junho, o passeio será feito por alunos da rede pública de ensino. O banco Itaú ajudará com transporte e alimentação e a idéia é trazer oito mil estudantes. "Precisa formar também os professores", sussurra alguém na platéia. Na tela, agora, exibe-se o projeto de fim de curso na FAU de Cristina Junqueira Zaharenko. Naquele mesmo lugar, a arquiteta projetou um centro de educação ambiental. O desenho mostra passarelas sobre as águas, seria uma espécie de mirante em movimento. "Gostaria de trazer a identidade do rio de volta para a cidade", afirma Cristina. "Fazer com que as pessoas percebam que o Tietê não é só um receptor de esgoto."


Antes de recolher o telão, Siqueira brinca: "Quando trazemos a pessoa para cá, a enchemos de informações. Aqui no barco a pessoa não tem como escapar. Ela vem e não tem como sair." A frase, que poderia ser slogan da prisão da ilha de Alcatraz, na baía de São Francisco, parece se ajustar bem à situação de quem começa a navegação no Almirante do Lago. A palestra termina, o barco zarpa e todos saem do auditório. A garoa cedeu e o lugar mais concorrido é o deque, no terceiro andar. Quatro amigas encostam na balaustrada e esticam os braços, imitando a pose de Leonardo di Caprio em "Titanic". O professor da FAU Vladimir Bartalini não disfarça o espanto. "Estou desorientado", confessa. "Para que lado está o rio Pinheiros?"


Deste ponto da cidade, um barco dentro do Tietê, não se entende imediatamente onde se está. Todos os dias passam por ali uns 700 mil veículos, o que dá mais ou menos 1,5 milhão de pessoas que trafegam pela marginal mirando em linha reta. "A gente não olha para cá, não se dá conta que isto aqui ainda é um rio", comenta uma moça. "Para nós é só um esgotão, uma cena que não temos nenhuma vontade de ver."


Os garçons estão servindo espumante. Alguém aponta onde é a Lapa, a Vila Leopoldina. Uma garça branca atravessa à frente. Passa-se por perto do entreposto do Ceagesp, logo ali desponta o edifício dos Correios. Ninguém define esse armazém azul. "É uma sensação muito louca", diz ao celular a professora de história da arte Anna Mantovani. "Estou me sentindo em Paris", continua. Ao desligar explica que tinha ligado para a sobrinha bióloga. "A cidade vista pelo rio tem outra perspectiva. É a última coisa que eu pensaria em fazer em São Paulo e estou me divertindo."


Quem está em terra firme está parado no trânsito. Um caminhão buzina; alguém acena do carro vermelho. A ambulância desvia fazendo malabarismos, sirene ligada. "Olha só do que nos livramos", aponta a arquiteta e astróloga Rosa di Maulo. "Estamos andando mais rápido do que os carros, estamos fluindo." Debaixo de um pilar de viaduto, surge o desenho de um Cristo dentro de uma prancha de surfe, tudo emoldurado por um grande sol. A ponte da Anhangüera se aproxima e é muito baixa, dá a sensação de que pode ser tocada. Os dedos apontam para a construção cinza, imponente e abandonada, sobre o morro. "É a casa da marquesa de Santos", conta Siqueira. "Não pode ser, isso é lenda urbana", discorda a professora Maria Lúcia Bressan Pinheiros, do Centro de Preservação Cultural da USP. "Essa casa tem traços dos anos 1930", arrisca, prometendo pesquisar mais depois.


Para quem espia daqui debaixo, as alças de acesso à avenida dos Bandeirantes e o monumento marco da rodovia fazem o desenho de um coração. "O que mais me choca é o desperdício do patrimônio urbano. Não podíamos ter deixado isso se deteriorar assim, é um absurdo", registra a professora Maria Lúcia. Ela observa a quantidade impressionante de fios e redes de alta tensão que sujam a paisagem. O professor Bartalini está atento aos córregos que aparecem e desembocam no Tietê. "Tenho um trabalho de pesquisa dos córregos ocultos da cidade", explica.


Passa um caminhão de ovos na marginal. Atrás vem outro cheio de toras. Um terceiro está carregado de motos. Na altura da ponte do Piqueri o barco pára e vira. Alguém lamenta não ter chegado até a ponte das Bandeiras, onipresente nas fotos antigas do Tietê, em épocas em que por ali se faziam regatas. O som do tráfego intenso é interrompido pelos acordes de um saxofone tocando "Corcovado", de Tom Jobim. O homem de camisa branca e gravata é confundido com a tripulação. "Não, sou motorista do ônibus que trouxe o pessoal", esclarece Paulo Ribeiro de Souza. Ao lado está o colega Odair Mendes, também da Gatti. "Olhando a cidade daqui eu me sinto com o radar quebrado", diz. "Se muitos fizerem este passeio vão ver como é legal. Talvez assim se consiga cuidar mais do rio."


Guilherme Figueiroa, o saxofonista, toca "Sampa" e depois passa a "Alô, Alô, Marciano." Quando respira, diz que a experiência de tocar na marginal, navegando no Tietê, é inusitada, "quase bizarra". Os navegantes estão relaxados, acenam para os carros. A historiadora e antropóloga Gloria Kok tem vários trabalhos sobre São Paulo e sobre a história do rio, mas confessa nunca ter visto a marginal por essa perspectiva. Ela sente falta de mais informação no passeio, de fontes e fatos que relacionem a história do rio à vida da cidade. "O Tietê já foi um lugar importante de convívio dos paulistanos. Acho fundamental mostrar isso."


Siqueira, do Instituto Navega São Paulo, anota a sugestão. "Nossa intenção é esta, conscientizar. Já nos pediram para fazer festa no barco, mas não há essa hipótese. Não é esse o nosso objetivo." O Almirante do Lago, que é da empresa Transrio, volta para o porto sob o Cebolão. O arquiteto Marcio Mazza sonha com seu novo projeto, um "planeta de passeios", que pretende montar junto a parceiros privados. Dali planejaria incursões diversas pelos arredores paulistanos. "São Paulo é uma cidade de imigrantes, o que é legal por um lado, muito cosmopolita. Mas também faz com que ninguém tenha muito pé por aqui", diz. Os quatro ônibus buzinam, as pessoas não saem do barco no Tietê. Parecem ter ficado seduzidas pelo lugar menos desejado da cidade. Os urubus, silenciosos, espreitam.

(de http://www.valoronline.com.br/valoreconomico/285/euefimdesemana/cultura/Bem-vindo+ao+Tiete,08203,,47,4837365.html)

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